UM ANJO PARTIU

Marcos Pontes
12/11/2008

Brandon está morrendo. Ele tem nove anos. Durante um terço de sua vida, ele lutou contra a leucemia. Ela venceu.
Restando duas semanas de vida (segundo os médicos), enquanto descansa seus últimos dias, Brandon admira a paisagem verde do jardim bem cuidado do hospital. O movimento incessante dos pássaros, dias de chuva, dias de sol, pessoas apressadas, pessoas pensativas, pessoas felizes.
Hoje é um dia importante para ele. Além de ficar livre das injeções e das sessões de quimioterapia com seus efeitos colaterais, o seu último pedido era que todos os seus amigos e familiares se juntassem em um esforço humanitário. A idéia seria distribuir alimento e roupas, por um dia, para os moradores de rua da cidade. Tudo foi organizado no estacionamento do grande supermercado, em frente do hospital. Brandon já não tinha forças para ir ao local, mas podia ver o movimento pela sua janela, sua janela para o mundo.
Logo de manhã, uma grande fila se formou. Vieram pessoas de todos os lugares para ajudar e para receber ajuda. Pessoas boas e ricas, pessoas boas e pobres, muitas pessoas. Todos ajudando, uns aos outros. Brandon está feliz. Sorri satisfeito, assim como aqueles famintos que não tinham uma refeição por tanto tempo.
Todo o movimento chamou a atenção da imprensa. Eles procuram por Brandon na multidão. Não acharam. Os médicos autorizaram apenas um repórter a entrar no quarto levando as perguntas de todos os outros.
A conversa foi surpreendente para o experiente repórter.
“Olá Brandon! Eu sou Joe Smith, repórter do jornal local, e gostaria de falar um pouco contigo sobre o dia de hoje.”
“Olá Joe. Está bonito o dia lá fora, não está?”
“Sim Brandon. É um dia cheio de sol e felicidade. E você, está feliz?”
“Muito. O que eu poderia sentir de melhor?”
“Como assim?”
“Bem, todos os dias eu posso escolher entre ser feliz ou me deixar levar pelos problemas da vida. Nesses últimos dias, eu sempre escolho ser feliz.”
“Você não tem medo?”
“Claro! Mas o medo não me tem. Nesse exato momento, nesse instante, nada de ruim está acontecendo. Não há razão para ter medo.”
“Por que você pediu para os seus amigos alimentarem as pessoas de rua? Sabendo da sua situação, do seu pouco tempo de vida, como você achou maneira de pensar nos outros? Por que isso é importante para você?”
“Eu estou bem alimentado, mas sei como é dificil sentir-se mal. Também sei como é bom saber que alguém está contigo nas horas difíceis. Veja bem, hoje aqui estamos todos juntos... felizes, cada um com a sua razão para estar satisfeito, no corpo e no espírito. Estamos juntos e em paz. Não é isso que buscamos na vida?”
“O que é paz e guerra para você?”
“Paz é a busca da felicidade dentro de nós mesmos. Guerra é a busca da felicidade fora de nós.”
“Você tem algum tipo de mágoa por estar doente?”
“No começo, principalmente quando eu estava passando mal depois das injeções de quimioterapia, eu perguntava para Deus o que eu tinha feito de errado. Depois, quando notei o quanto os meus pais sofriam devido à minha doença, eu pedi a Ele que os tirasse desse sofrimento, pois qualquer coisa que eu tivesse feito não deveria prejudicar a eles também. Hoje eu agradeço a Deus pelo tempo que me deu próximo a eles e por me deixar tranquilo e feliz nesses últimos dias.”
O repórter, que engolia o “nó na garganta” já por algum tempo, deixou escapar uma lágrima. Com medo de prejudicar o garoto com os seus sentimentos, limpou o rosto rapidamente,
“Não chore por mim, ou por esta situação. Esta doença já provocou lágrimas demais. Eu vou feliz, e quero que todos fiquem felizes também.”
O repórter continuou, ainda com a voz trêmula: “O que é doença para você?”
“Nosso corpo é o que temos de mais frágil. Algumas pessoas atrelam a sua completa identidade a ele, ou às coisas que possuem, ou ao cargo que exercem. Isso é um tipo de doença mais difícil que a minha, pois o tratamento é ainda mais doloroso.”
“O que você falaria para essas pessoas e também para as outras pessoas que estão doentes, no corpo ou no espírito?”
“Eu diria que tudo isso, bom ou ruim, belo ou feio, riqueza ou pobreza, como tudo mais na vida, vai passar também.”
“E esperança?”
“Ela está dentro de você. Depende apenas da sua atitude. Você pode ser uma pessoa extremamente saudável no corpo e não ter nenhuma esperança, porque a sua atitude é de ver dificuldades. Por outro lado, você pode ser uma pessoa doente fisicamente, ou estar em situação muito difícil, mas se a sua atitude é ver coisas boas, você não só tem esperança, mas também viverá feliz hoje (que é o único dia que temos para viver). Mais ainda, um dia também terá muitas coisas boas.”
“E Deus?”
“Daqui há algumas semanas eu te conto.” Falou Brandon sorrindo e cansado.
O médico pediu para a entrevista terminar. O jornalista saiu pensativo pelos corredores do prédio, abriu a porta para o jardim, e seguiu para o estacionamento do supermercado para ajudar no evento dos moradores de rua. No caminho, ele via o sol, sentia a brisa no rosto e ouvia os pássaros. Parecia outro mundo. Parecia mais real, mais vivo.
Passamos a nossa vida, de muitos anos, sempre buscando fora de nós por respostas que, na verdade, já estão dentro de nós, desde 2000 anos atrás. Uma criança de nove anos as tinha.
“A felicidade é viver o dia de hoje.”
Brandon faleceu dois dias depois do evento. Ele partiu feliz.

Marcos Pontes
Colunista, professor e primeiro astronauta profissional lusófono a orbitar o planeta, de família humilde, começou como eletricista aprendiz da RFFSA aos 14 anos, em Bauru (SP), para se tornar oficial aviador da Força Aérea Brasileira (FAB), piloto de caça, instrutor, líder de esquadrilha, engenheiro aeronáutico formado pelo Instituto Tecnológico de Aeronáutica (ITA), piloto de testes de aeronaves do Instituto de Aeronáutica e Espaço (IAE), mestre em Engenharia de Sistemas graduado pela Naval Postgraduate School (NPS USNAVY, Monterey - CA).
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